Certa vez, fiz um favor a um parente,
representando-o em uma Reclamação Trabalhista na qual sua conta bancária tinha
sido bloqueada, a pedido de um reclamante que tinha trabalhado em uma empresa
da qual ele tinha sido sócio. O reclamante havia sido contratado anos depois
que ele havia saído da sociedade. Fui falar com o juiz, pedindo a exclusão do
ex-sócio da execução. O juiz ouviu, olhou para mim e disse: “mas o reclamante
não pode ficar no desamparo”. Eu disse: “Excelência, não há diferença quanto à
responsabilidade por esse débito entre o meu cliente ou uma pessoa que vai
passando agora na calçada”.
Essa
história ilustra bem o quanto é perigoso voluntarismo no agir do Judiciário. O
magistrado citado tinha boa intenção, queria proteger um desprotegido, mas
cometeria, com sua ação, uma injustiça inquestionável.
No
espetáculo do julgamento do mensalão, já fiquei bastante assustado com o
palavreado de alguns ministros, que parecem buscar aceitação de uma grande
massa que espera a condenação geral dos réus. Alguns usam termos
desnecessários, agressivos, que nada acrescentam à justificação da decisão.
No entanto, a leitura do Voto do
Ministro Relator sobre José Dirceu foi que mais me deixou de orelha em pé.
No
que se refere à reprovação política, posso atribuir, sem provas,
responsabilidades a diversas pessoas ligadas ao fato. Direito Penal, no
entanto, é diferente. Posso dizer que o Papa é responsável pelos casos de
pedofilia na Igreja, mas não posso condenar o Papa por nenhum desses casos concretos
de violência sexual contra crianças, pois a responsabilidade penal é individual
e a conduta correspondente ao tipo precisa ser provada.
A
meu ver, o voto do Min. Joaquim Barbosa foi assustador. Um conjunto de suposições
formando uma rede, que levavam à responsabilidade de José Dirceu. Esse
superpoder ao juiz penal, de justificar a responsabilidade por entender não ser
“factível” a defesa do réu, é nitidamente perigoso. Acusa o Voto do Relator José
Dirceu de ter recebido presidentes de partidos, acusação que seria verdadeira
tratando-se de qualquer Chefe da Casa Civil. Literalmente, disse o ministro que
considera “impossível acolher a tese de que José
Dirceu simplesmente não sabia que Marcos Valério vinha fazendo pagamentos a
parlamentares da base aliada”, sem citar qualquer testemunho que aponte para a
participação de Dirceu. Fala da viagem a Portugal feita por Marcos Valério como
se ele falasse “de fato, em nome de José Dirceu, e não como um pequeno e
desconhecido publicitário de Minas Gerais. Era o seu broker”,
quando não cita qualquer depoimento nesse sentido.
Resumindo:
para essa tese, bastaria uma prova: o Diário Oficial, nomeando José Dirceu Ministro
Chefe da Casa Civil.
Há,
praticamente, uma presunção relativa de culpa, sendo o réu condenado por não
ter produzido suficiente prova em contrário, quando o ônus da prova dos fatos
que incriminam o réu é da acusação.
Sei
que muita coisa mudou no Direito Penal desde que fui, na UFRN, monitor da
matéria, mas espero que não tenha mudado ao ponto de ser esse “Direito Penal
alternativo” aceito pela maioria dos penalistas.
Além
de todas essas perplexidades, sinto uma profunda tristeza, por ver alguns amigos
da área jurídica, que estudaram Direito, que tiveram oportunidade de conhecer
garantias penais, saber dos riscos de sua relativização, agindo como se
vibrassem, em uma arena, com um leão estraçalhando um cristão.
Já
vi quem me respondesse dizendo que “não aguenta mais a corrupção” e que “quer a
condenação de todos”. Não há qualquer diferença entre esse raciocínio e o
raciocínio dos que apoiam, nas periferias das grandes cidades, grupos de
extermínio, que matam aqueles que, aos olhos da maioria, são os bandidos do
lugar. Eles não aguentam mais tantos crimes. Morrendo alguns, não importando
suas responsabilidades individuais, haverá menos crime.
Nunca
nutri qualquer admiração por José Dirceu. Quando fui militante do PT, sempre
estive em lado oposto ao dele e sempre reclamei da forma como ele conduzia
processos políticos dentro do partido. Não afirmo aqui a sua inocência. Não
tenho elementos para isso. Mas não transformo a imagem que tenho dele em
justificador de uma condenação por mera suspeita.
Não,
não participarei desse rolo compressor, tenha lá as razões que tenha, e digo não
a esse “direito penal alternativo”.